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Leia trechos inéditos em português de cartas entre Camus e Casàres

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O “Dia D” de Camus e Maria Casarès: Em 1949, às vésperas do retorno de Camus após dois meses de viagem pela América do Sul, os dois amantes trocam cartas que evocam a data em que começou seu relacionamento – dia do desembarque dos Aliados na Normandia – e a separação de quatro anos após o fim da Segunda Guerra.

 

Maria Casarès a Albert Camus, 16 de agosto de 1949

 

Antes da sua chegada, antes do nosso reencontro, antes de dar início à vida que nos aguarda — tão árdua e tão doce ao mesmo tempo —, eu queria, meu querido, deixar para trás os momentos terríveis de cegueira e loucura que, por minha culpa, vivemos antes da sua partida. Para isso, meu querido, vou tentar me explicar uma última vez, esperando de coração que depois nunca mas precisemos voltar a falar disso.

Isso vem de muito longe, do início da minha vida, talvez, mas eu não temo nada, vou lhe dizer apenas o essencial, o que nos diz respeito. Quando o conheci, soube que poderia amá-lo. A vida e minha juventude nos separaram.

Durante muito tempo, pouco consciente da minha loucura, tentei encontrar o que chamava de “meu absoluto” em outros lugares. E o busquei com tanta obstinação, tanta teimosia, que achei que o tinha encontrado. Um belo dia, enxerguei com clareza. Rompi com tudo e me entreguei a uma espécie de desespero que nem tentei aprofundar por falta de gosto ou de tempo.

Sim; meu querido, antes de voltarmos a nos ver, muitas coisas morreram em mim e nada as substituiu antes da sua chegada. Eu não acreditava em mais nada e achava até mesmo que o coração falhava sem uma vontade feroz para apoiá-lo.

Eu te conheci. Aí, não me pergunte nada; eu não saberia responder; não sei por que vim mais uma vez para você tão naturalmente, tão simplesmente. Antes de tudo, talvez, para ver? Depois — e disto estou certa — porque voltei a acreditar. (…)

Você não pode imaginar a emoção que senti quando descobri a data (6 de junho) em que nos encontramos. Você me pareceu a última boia lançada no meio de uma vida já então vazia. Me agarrei a ela com todas as forças fechando voluntariamente os olhos a tudo que pudesse pôr em risco essa última esperança.


Albert Camus a Maria Casarès, Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1949

 

Tudo que você me diz eu já sabia e me doía, como a você. Mas eu te amava e esperava que voltasse para mim. Pois você voltou e eu corro para junto de você e dentro de alguns dias será a paz. Será uma paz difícil, entrecortada de relâmpagos, às vezes dolorosa. Mas a sua confiança, a certeza que você demonstra a mim me levam a pensar que nosso amor ao menos não vai assumir mais esse horroroso rosto fechado, e um ar de ojeriza e de sofrimento ruim, que eu só consegui suportar por um esforço de todo o meu ser — que me deixou diminuído. A sua felicidade, o seu riso, o seu prazer, isto é que me faz viver e me faz ir além de mim mesmo. Tudo isso eu espero, junto com você. Dormir com você, dormir, até o fim do mundo…

(…) Me receba no seu coração, longe de todo ruído, me abrigue mais um pouco e depois comecemos a viver esse amor que não pode se cansar. Você inteira, sem uma reserva, é disso que estou ávido — com todo o meu ser. Até logo, querida, até já, estou rindo de felicidade, sozinho, estupidamente, comovido como se fosse um 6 de junho.


Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940 (©Collection Catherine et Jean Camus)

Pacto de carne e sangue: em cartas enviadas entre 1950 e 1951, Camus e Maria Casarès adotam um tom tórrido ao falar do vínculo que os uniu até a morte do escritor

 

Albert Camus a Maria Casarès, 10 de fevereiro de 1950

 

Ainda há pouco, triste, meio frustrado, eu tentava imaginar um futuro sem você. Te peço, meu amor querido, aconteça o que acontecer, nunca me deixe. Faça o que bem entender, eu suportarei qualquer coisa de você, mas seja minha. O que estou te dizendo é muito sério e foi pensado longamente: o vínculo que me liga a você agora é o da própria vida. Se for cortado, é a agonia e a loucura. (…)

Deixe esta carta de lado e se um dia vier a tentação de me rejeitar volte a lê-la. Ela vai te dizer a verdade que um dia eu descobri horrorizado: que, apesar do que julgava ser e apesar de tudo que aparentemente me completa, não sou nada sem você — senão um egoísmo desesperado e já agora estéril. Você é a vida e o que me prende a ela. Devo a você um novo ser em mim ou, melhor, aquele que eu era realmente e que jamais tinha conseguido nascer. É por isso que você me pertence em absoluto e para sempre, como uma mãe pertence àquele que gerou. Não estou louco ao lhe dizer isso. Sou eu, aquele que você conhece, o claro, o lúcido, que está falando com você. O sangue que um dia trocamos rindo significava exatamente isto: união indestrutível. E um dos sentidos da união indestrutível é que, se um se afasta, o outro entra em agonia. O que nos liga não são vínculos de devaneio ou de convenção, são os vínculos do sangue, da criação de um pelo outro, e da carne.


Maria Casarès a Albert Camus, 8 de junho de 1950

 

Estou fervendo por dentro, por fora. Tudo arde, alma, corpo, em cima, embaixo, coração, carne, e já vai chegando a languidez da noite que cai. (…)

Os dias passam e me vejo na obrigação de te avisar que o demônio já está me rondando, com certeza, embora por enquanto eu ainda esteja mergulhada no mesmo estado de graça em que você me deixou ao partir. Algumas pequenas angústias numa dessas noites — pensamentos mórbidos que não têm a menor relação conosco — e o estado de graça. Mas eu me conheço: talvez amanhã a tempestade volte a se manifestar e quero que você esteja prevenido. Portanto, escreva eu o que escrever, é melhor pensar que eu “não estou batendo bem da bola”. E durma, e trabalhe e seja feliz.

Você continua rindo com aquele riso que eu adoro? Continua magnífico como da última vez que te vi? Vai me deixar de novo doente de tão apaixonada no nosso no próximo encontro? Vai me deixar de novo feliz… Ah! não consigo pensar sem sentir vertigem! Ah! Você. Você, meu querido, para me revigorar, me fazer desabrochar, me rasgar, me consumir. (…)

Albert Camus a Maria Casarès, 14 de fevereiro de 1951

 

Sua carta, querida Arícia [referência à personagem de Fedra, de Racine], apela diretamente aos meus instintos mais elementares. Ela não teve a menor dificuldade para provocar uma reação. Há dias já venho lutando contra imagens embaraçosas e desde ontem, justamente, começou um vento cortante que uiva, dia e noite. No céu azul e frio ou sob as estrelas — e que arranha os nervos, os deixa expostos, irritados, e queima também as têmporas. Domingo à noite serão quatro longas semanas que me separei de você, no sentido exato da palavra, e não esqueci nada daquela noite de ensaio de vestuário, nem dos outros dias ou noites, iluminados de desejo e das nossas alegrias. Mas eu estava conseguindo calar tudo isso, que permanecia como um surdo e constante ronco bem lá no fundo de mim, ronco ruim das feras forçadas a dar voltas para se sentar, no chicote. Basta uma carta, provocante é verdade, e as barreiras vão por terra. O homem é muito pouco, as feras foram soltas, lábios reluzentes, músculos tensionados a ponto de se romper e, no entanto, flexíveis, o lombo que se empertiga e nos olhos a dura loucura que quer se saciar! Ah! estou com raiva de você neste momento. O que estamos esperando para correr um para o outro? Não existem aviões, trens, noites à nossa espera? Venha, meu animalzinho, tudo isso é muito duro de se viver, essa longa ausência, esse novo exílio são insuportáveis.

Desde ontem mergulhei de novo nesse mundo abstrato e violento — mas morro de vontade de viver, no sol, na carne, na tua carne…


A íntegra das cartas será publicada em 2020 pela editora Record, no livro Correspondência: 1944 – 1959, com fixação do texto Béatrice Vaillant, tradução de Clóvis Marques e prefácio de Catherine Camus

 


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